Professor por vocação

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terça-feira, 3 de agosto de 2010

Vamos falar de Manuel Antônio ÁLVARES DE AZEVEDO...A pedido da Gizelle Marques e porque ela escreve muito bem!

Nasceu na cidade de São Paulo e era descendente de duas ilustres famílias. O pai ocupara importantes cargos públicos (juiz de direito; chefe de polícia, deputado geral), tanto na capital paulista quanto no Rio de Janeiro, para onde se transferira com a família, passando a residir em Niterói. Toda a formação básica e secundária de Manuel Antônio Álvares de Azevedo foi feita na capital do Império. Em 1848, ele voltou a São Paulo para cursar a Faculdade de Direito, participando ativamente da vida acadêmica e literária de seu tempo. Revelou-se um aluno brilhante e um colega estimado, mas o caráter provinciano da Paulicéia, a mediocridade de sua vida social e a incapacidade do poeta de estabelecer um relacionamento amoroso concreto o tornaram bastante infeliz. Sentia saudades de casa, especialmente da mãe e da irmã, e a exemplo de seus companheiros de curso consumia-se na leitura dos autores malditos do Romantismo europeu. Este desnível entre as vidas intensas dos europeus e a pobreza de experiências dos universitários de São Paulo certamente o atormentava. Ele, porém, não se tornou um alienado das coisas locais. Numa sociedade acadêmica, que reunia os colegas, proferiu duro discurso contra a educação pública no Brasil, dizendo que ela era "um escárneo", em particular "a instrução primária para as classes baixas".

Nas férias longas, entre o ano letivo de 1849 e 1850, os familiares repararam no caráter acabrunhado e melancólico do "Maneco". A leitura desenfreada dos ultra-românticos, a solidão e o desejo insatisfeito pareciam deprimi-lo, aproximando-o de inclinações mórbidas. No início de 1852, a tísica se manifestou. Como disse um de seus biógrafos: "O infeliz byroniano que durante anos declamara versos macabros por mero esnobismo via com horror chegar a sua morte." Neste momento dramático, escreveu alguns de seus poemas mais desesperados. Em seguida, após curta passagem pelo campo, na fazenda de um tio, pareceu se recuperar, chegando a pedir transferência de Faculdade - de São Paulo para Olinda, onde o clima seria mais propício à tuberculose - mas uma queda de cavalo afetou-lhe a região ilíaca. Os médicos resolveram operá-lo, obviamente sem anestesia. Ele suportou as dores, porém tudo foi inútil: a tísica havia destruído as imunidades de seu organismo. Poucos dias depois morreu. Era abril de 1852 e faltavam cinco meses para que completasse vinte e um anos de idade. Nenhum de seus livros tinha sido publicado. E a "glória que pressinto em meu futuro" , como ele diz em um de seus poemas, viria após o falecimento.

Obras: Lira dos vinte anos (poemas - 1853), Noite na taverna (contos - 1855), O conde Lopo (poema - 1886), Macário (poema dramático - 1855).

A obra de Álvares de Azevedo, fortemente autobiográfica, traz a marca da adolescência, mas de uma adolescência tão dilacerada e conflituosa que acaba por representar a experiência mais pungente do Romantismo brasileiro, tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista poético.

Incansável leitor, surpreendentemente culto, o jovem paulista viveu a contradição entre o saber livresco e os seus limites existenciais. Sua alternativa é o fingimento: "Finge um formidável conhecimento da vida", diz dele Mário de Andrade. Em muitos poemas expressa essa "pose de cinismo" que nasce, simultaneamente, da imitação dos ultra-românticos europeus e da fantasia delirante. Por sorte, no seu universo lírico, os temas se ampliam, superando o artificialismo byroniano, o que lhe assegura um lugar privilegiado na história literária do período.

Quatro são os seus temas preferidos:

o amor
a morte
o tédio
o humor prosaico

O AMOR

É a parte menos convincente de sua lírica. A máscara satânica que tenta usar peca pela falsidade. As orgias em que submerge, os vícios que o escravizam e as dissipações que o arrastam para o lodo hoje provocam o riso do leitor. E não apenas porque o jovem escritor tenha ficado, de fato, virgem dessas vivências tresloucadas, mas porque - em seus poemas de "crimes morais e maldições" - poucos versos têm poder de persuasão e quase nada inquieta ou sobressalta. Veja-se o tom falso deste excerto:

E por te amar, por teu desdém, perdi-me...
Tresnoitei-me em orgias, macilento,
Brindei, blasfemo, ao vício, e da minh'alma
Tentei me suicidar, no esquecimento!


Amor e medo

No entanto, como bem observou Mário de Andrade, o autor de Lira dos vinte anos (esse Dom Juan das aparências) acaba sendo traído pela própria interioridade. O grande devasso, o amante cínico, revela inconscientemente um medo obscuro das relações amorosas.

Este medo se traduz, por exemplo, através da imagem da mulher adormecida. Numa série de poemas, a preparação erótica e a vontade sexual do adolescente se frustram, pois ele não quer acordar ("profanar") o objeto de seu desejo:

Ó minha amante, minha doce virgem,
Eu não te profanei, e dormes pura
No sono do mistério, qual na vida,
Podes sonhar ainda na ventura.


Em Soneto, um de seus textos melhor elaborados, Álvares de Azevedo descreve o sono da amada e cria sutil atmosfera que passa da idealização à sensualidade:

Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre nuvens de amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada...
-- Era um anjo entre nuvens d' alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos, as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...


Diante disso, desse "seio palpitando", dessas "formas nuas no leito resvalando" o que faz o poeta? Atira-se sobre a encantadora como um lobo cheio de volúpia? Não; a timidez entrava o erotismo e ele simplesmente opta por ficar sorrindo e chorando pelo seu "anjo":

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!


Aliás, em vários momentos, quando o amor parece a ponto de se concretizar, o escritor prefere dormir, desmaiar ou morrer: "Na tua cheirosa trança / Quero sonhar e dormir!"; "Ah! volta inda uma vez! foi só contigo / Que à noite, de ventura eu desmaiava"; "E no teu seio ser feliz morrendo!"; "E morra no teu seio o meu viver!" No poema Tereza, chega a confessar explicitamente o seu medo:

Não acordes tão cedo! enquanto dormes
Eu posso dar-te beijos em segredo...
Mas, quando nos teus olhos raia a vida,
Não ouso te fitar...eu tenho medo!


De acordo com Mário de Andrade, algumas das dificuldades de Álvares de Azevedo com o amor nascem da velha dicotomia entre o sexo e o sentimento. A impossibilidade de unir alma e carne - segundo a tradição cultural então vigente - exaspera-o. Não existe mulher que possa corresponder às duas exigências. Há aquelas para o amor e há outras para os instintos. As primeiras, donzelas virginais, são - no dizer do crítico - "inatingíveis". As segundas, anjos caídos que cedem a pureza de seus corpos, são "desprezíveis". E assim o poeta permanece dilacerado: à sua timidez soma-se a ausência de uma mulher capaz de satisfazê-lo física e espiritualmente.

A MORTE

Quando trata da morte - o aspecto mais conhecido de sua obra - pode-se perceber com clareza as qualidades expressivas do artista. Ela é um tema constante. O poeta a antevê, a profetiza para si próprio, não pode esquecê-la. De certa maneira, fez uma opção por ela - diferentemente de outros companheiros de geração que se desesperam ao perceber o fim - quis morrer aos vinte anos, entregar-se à "leviana prostituta", como se vê neste fragmento de Hinos do Profeta:

A morte, leviana prostituta,
Não distingue os amantes!....
Eu, pobre sonhador! eu, terra inculta
Onde não fecundou-se uma semente,
Convosco dormirei...


Mesmo assim, há desespero e angústia nessa entrega. Ele lembra as coisas que vai perder, os afetos, o futuro. Lamenta-se por isso. Por outro lado, a morte é a possibilidade de resolução de sua crise, de suas dores. Se eu morresse amanhã cristaliza esta ambigüidade amarga:

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã*!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã*...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!"


Louçã: graciosa, encantadora
Afã: vontade, ânsia

No poema Lembrança de morrer, Álvares de Azevedo dá instruções sobre o seu túmulo e sua lápide:

"Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento. (...)

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela
- Foi poeta, sonhou e amou na vida."

O TÉDIO

Na segunda parte de Lira dos vinte anos, as fantasias eróticas, a avidez pelo amor, os artifícios byronianos e mesmo a obsessão pela morte, cedem lugar a uma espécie de cansaço existencial, o tédio.

O tédio, ou "mal du siècle", para os românticos europeus, era uma espécie de cinismo e enfado de quem tudo viveu, tudo experimentou: sexo, bebidas, ópio, transgressões. Mais tarde, Baudelaire diria que lera todos os livros, amara todas as mulheres mas que sua carne permanecia triste. Esta é a definição mais perfeita do mal do século.

Já no caso de Álvares de Azevedo, o tédio resultava da falta de vivências a que a cidade de São Paulo o condenava. Era uma cidadezinha provinciana, medíocre, de insípida vida noturna, sem horizontes para um rapaz sonhador.

Quase a pique de "suicidar-se de spleen*", o poeta atenua os excessos ultra-românticos descendo do sublime, da atmosfera rarefeita e terrível das grandes paixões, e entrando na verdade de suas coisas íntimas, expõe a subjetividade sem véus imaginários. E assim, descobrimos, por fim, o que ele realmente pensava e quem realmente ele era: um jovem tímido, inexperiente e sequioso de amor:

Passei como Dom Juan entre as donzelas,
Suspirei as canções mais doloridas
E ninguém me escutou...
Oh! nunca à virgem flor das faces belas
Sorvi o mel nas longas despedidas...
Meu Deus! ninguém me amou!


*Spleen: tédio em inglês.

Poucas vezes, na literatura brasileira, as confissões de um adolescente adquiriram tanto frescor, beleza e emoção. Esta alma solitária e impotente debateu-se entre o tédio, que o arrastava para a realidade e os ideais, que precisava para sobreviver, como vemos nestes fragmentos de Idéias íntimas, talvez o mais sedutor de seus poemas:

Vou ficando blasé*, passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar... Vivo fumando.
Minha casa não tem menores névoas
Que as deste céu de inverno...Solitário,
Passo as noites aqui e os dias longos.
Dei-me agora ao charuto em corpo e alma; (...)
Não passeio a cavalo e não namoro.

Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas*
À estante pulvurenta*. A roupa, os livros
Sobre as cadeiras poucas se confundem.
Marca a folha do Fausto um colarinho (...)

E resta agora aquela vaga sombra na parede
- Fantasma de carvão e pó cerúleo* -
Tão vaga, tão extinta e fumarenta
Como de um sonho o recordar incerto.

O pobre leito meu, desfeito ainda,
A febre aponta da noturna insônia.
Aqui lânguido à noite debati-me
Em vãos delírios anelando um beijo...(...)
Foram sonhos contudo. A minha vida
Se esgota em ilusões. (...)

Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo! (...)

Meu pobre leito! eu amo-te contudo!
Aqui levei sonhando noites belas,
As longas horas olvidei libando*
Ardentes gotas de licor doirado.
Esqueci-as no fumo, na leitura
Das páginas lascivas do romance...(...)
E a mente errante devaneia em mundos
Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes
Do levante no sol entre odaliscas,
Momentos não passei que valem vidas!
Quanta música ouvi que me encantava!
Quantas virgens amei! (...)

Parece que chorei...Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando...
Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,
Derrama no meu copo as gotas últimas
Dessa garrafa negra...
Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem fogoso cognac! É só contigo
Que sinto-me viver.(...)

E eu me esquecia...
Faz-se noite; traz o fogo e dois charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada...

* Blasé: entediado.
* Bambinelas: cortinas.
* Pulvurenta: empoeirada.

O Humor Prosáico




Um dos traços mais surpreendentes de Álvares de Azevedo é a ironia, resultante da descoberta do risível nas coisas prosaicas. Sem qualquer exacerbação sentimental, o poeta olha para tudo aquilo que o cerca e penetra humoristicamente no cotidiano.

Nenhum romântico antes ou depois dele conseguiu efeitos tão engraçados e inesperados. No mais das vezes, a ironia tem rara fineza. Em Spleen e charutos, obra composta por seis poemas, o humor prima pela sutileza, como nesta estrofe de Solidão:

Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem cear comigo.


* Cerúleo: da cor do céu.
* Libando: bebendo.

MACÁRIO

Em Macário, Álvares de Azevedo intentou criar uma obra dramática em prosa. São cinco cenas de qualidade variável e pouco propícias à encenação. Na peça, um jovem, Macário, viajando rumo a cidade de São Paulo, onde vai estudar, pára numa estalagem no meio do caminho e faz amizade com um desconhecido mais velho, que é nada menos que o próprio Satã. Ambos iniciam então uma série de diálogos nos quais refletem cinicamente (em especial o diabo) sobre o sentido da vida, da morte, do amor e do sexo.

Na segunda cena, quando abandonam a estalagem e marcham para São Paulo, ocorre o melhor momento da peça, pois Satã faz análises hilariantes da realidade paulistana. Observe-se este diálogo entre o estudante e o demônio:

Macário:Por acaso há mulheres ali? (Em São Paulo)
Satã: Mulheres, padres, soldados e estudantes. (...) Para falar mais claro as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isso salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante tu.
Macário: Esta cidade deveria ter o teu nome.
Satã: Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. Demais essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia. (...) Até as calçadas...
Macário: Que têm?
Satã: São intransitáveis. Parecem encastoadas* as tais pedras. As calçadas do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou enjoado.



* Encastoadas: embutidas.

Na terceira cena, na casa de Satã, já na cidade, a temática concentra-se na questão do amor, visto como ilusão e sentimento ligado à morte. Na cena seguinte, Macário acorda de novo na pensão, como quem acordasse de um longo sonho, porém marcas chamuscadas no assoalho sugerem a passagem real do diabo.

A segunda parte da peça é assinalada pela presença de um personagem angelical (a antítese de Satã) chamado Penseroso. O artificialismo dos diálogos e a desarticulação das cenas tornam essa parte muito inferior à primeira. Quase no final, o puro Penseroso morre e Macário volta a se ligar com Satã, que então conduz o rapaz a uma orgia. Não para participar da mesma e sim para observá-la. E o que o demônio descortina para Macário parece ser o início de Noite na taverna:

Macário: Onde me levas?
Satan: A uma orgia. Vais ler uma página da vida; cheia de sangue e vinho - que importa? (...) Paremos aqui. Espia nessa janela.
Macário: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas... umas lívidas, outras vermelhas... Que noite!
Satã: Que vida! Não é assim? Pois bem, escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o ópio, é o Letes* do esquecimento... A embriaguez é como a morte...
Macário: Cala-te. Ouçamos.


* Letes: rio do Inferno mitológico.

NOITE NA TAVERNA (CONTO)



Se fôssemos cobrar verossimilhança dos contos que compõem o livro Noite na taverna, certamente riríamos desses sete rapazes que bebem, fumam, gritam, e - enquanto a fumaça se mistura com os eflúvios da cerveja e do conhaque - narram histórias de suas vidas orgíacas e criminosas.

Há algo de falsidade (e mesmo de bobagem pueril) nas cenas de necrofilia, incesto, canibalismo, assassinato e violação de todos os códigos morais que eles vão contando, falsamente horrorizados com o seu próprio desregramento. No entanto, apesar de sua total improbabilidade, esses relatos cínicos ainda hoje exercem uma sedução nos leitores, especialmente os mais jovens, mostrando que não se deve cobrar dos contos realismo e sim aquilo que eles representam simbolicamente.

Tendências góticas?

A partir do final do século XVIII e durante todo o Romantismo se desenvolveu um tipo de narrativa que ficou conhecida como gótico (2). Walnice Nogueira Galvão delimitou-o assim:

O gótico invoca as potências das trevas e exerce o ocultismo, a feitiçaria, a missa negra, a necrofilia, o culto ao demônio. Num clima onírico sepulcral predominam o informe, o inquietante. Compõem o cenário o castelo mal-assombrado, o cemitério, as ruínas, a bruma, entre as imagens dos mundos ínferos, tais como a masmorra, o porão, o túmulo. Pouco se disfarçam a sedução da morte e do aniquilamento. A prosa tempestuosa mimetiza as pulsões e projeções do inconsciente, às voltas com a atração pelo sacrilégio e pela profanação.

Ora, nos relatos curtos de Álvares de Azevedo predominam a concepção noturna da existência, a atração pela morte, o amoralismo com que se trai e se mata, além de compulsões incestuosas e necrófilas. Ou seja, elementos do gótico. O resultado é a criação de um mundo de sombras, onde indivíduos - torturados por impulsos proibidos - praticam ações que revelam o lado sujo e perverso de suas almas.

Talvez Álvares de Azevedo quisesse indagar, como disse Antonio Candido - através de suas histórias macabras, perversas e até mesmo risíveis - sobre os limites da crueldade e das possibilidades diabólicas do ser humano. Tudo isso o aproxima do gótico e dá certa consistência aos contos que assim ultrapassam a dimensão da falsidade melodramática* e transformam-se em opressivo pesadelo. Como exemplo, podemos lembrar um desses relatos.

* Melodramática: que apresenta exagero sentimental e gosto pelo patético.

(2) O nome gótico veio do primeiro romance desta tendência: O castelo de Otranto, de Horace Walpole, cujo enredo (cheio de mistério e terror) se desenvolve em um velho castelo gótico. Entre os autores que seguiram esta linha encontramos Mary Shelley, com Frankenstein e Bram Stoker, com Drácula. Também há fortes traços góticos nas obras de Edgar Allan Poe e de Lord Byron.

O RELATO DE JOHANN

A história de um dos moços, Johann, é um exemplo deste delírio noturno de Álvares de Azevedo. Em uma disputa de bilhar, o protagonista sente-se ofendido por outro jovem. Insultam-se e acabam duelando. Johann mata o estranho no confronto. Depois, rouba-lhe um anel e ao revistar o bolso do desconhecido encontra dois bilhetes: um para sua mãe e outro para a sua amada:

"A uma hora da noite na rua de ...n. 60, acharás a porta aberta. Tua G."
Não tinha outra assinatura. Eu não soube o que pensar. Tive uma idéia: era uma infâmia.
Fui à entrevista. Era no escuro. Tinha no dedo o anel que trouxera do morto. Senti uma mãozinha acetinada tomar-me pela mão, subi. A porta fechou-se.
Foi uma noite deliciosa. A amante era virgem. (...)
Quando eu ia sair, topei um vulto à porta.
- Boa noite, cavalheiro...eu vos esperava há muito.
Essa voz pareceu-me conhecida, porém eu tinha a cabeça desvairada...
Não respondi: o caso era singular. Continuei a descer, o vulto acompanhou-me. Quando chegamos à porta, vi luzir a folha de uma faca. Fiz um movimento e a lâmina resvalou-me no ombro. A luta fez-se terrível na escuridão. Eram dois homens que não se conheciam, que não pensavam talvez terem-se visto um dia à luz e que não haviam mais de ver-se porventura ambos vivos.
O punhal escapou-lhe das mãos, perdeu-se no escuro; subjuguei-o. Era um quadro infernal, um homem na escuridão abafando a boca do outro com a mão, sufocando-lhe a garganta com o joelho, e a outra mão a tatear na sombra procurando um ferro.
Nessa ocasião senti uma dor horrível: frio e dor me correram pela mão. O homem morrera sufocado e na agonia me enterrara os dentes pela carne. Foi a custo que desprendi a mão sangrenta da boca do cadáver. Ergui-me. (...)
Eu não podia crer: era um sonho fantástico toda aquela noite. Arrastei o cadáver pelos ombros... levei-o pela laje da calçada até o lampião da rua, levantei-lhe os cabelos ensangüentados do rosto... Um espasmo de medo contraiu horrivelmente a fase do narrador... Tomou o copo, foi beber... os dentes lhe batiam como de frio... o copo estalou-lhe nos lábios.
Aquele homem - sabeis-lo? - era do sangue do meu sangue, era filho das entranhas de minha mãe, como eu... era meu irmão! Uma idéia passou entre meus olhos como um anátema*. Subi ansioso ao sobrado. Entrei. A moça desmaiara de susto ouvindo a luta. Tinha a face fria como o mármore. Os seios nus e virgens estvam parados e gélidos como os de uma estátua (...)
Abri a janela, levei-a até aí...
Na verdade que sou um maldito! Olá, Archibald, dá-me um outro copo, enche-o de conhaque, enche-o até a borda! Vêde!... sinto frio, muito frio... tremo de calafrios e o suor me corre nas faces!(...)
- Que tens, Johann? Tiritas como um velho centenário.
- O que tenho? o que tenho? não vedes pois? Era minha irmã!


* Anátema: excomunhão, maldição.

Tá aí, meninas!!
Espero que ajude.
Bjiñsss

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